quinta-feira, agosto 06, 2009

Alvo de batalha judicial, chipanzés são tratadas como filhas

15/09/2008 - 11h34
Alvos de batalha judicial, chimpanzés são tratadas como filhas

FLÁVIA GIANINI
FLORA RANGEL
da Revista da Folha

As irmãs Megh, 3, e Debby, 4, disputam incansáveis o carinho dos pais. Principalmente quando a irmã Joyce, 27, está perto. É um tal de pular, gritar e jogar coisas nos outros. Nem precisava. As duas são objeto de atenção total da família, desde que foram adotadas no final de 2004. A competição entre irmãs seria normal se a pequena dupla não fosse de chimpanzés.

Primatas Megh e Debby são tratadas como filhas pela família que entrou na Justiça com pedido de habeas corpus para não soltá-las

No sítio em Ibiúna (70 km de São Paulo), elas vivem como gente. Foi na condição de "quase humanas" que se tornaram objeto de ação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde será julgado habeas corpus em benefício "das meninas", como a família se refere às primatas.

Para o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D'Urso, 48, bichos não são sujeitos de direito, mas, sim, a pessoa humana. "Não me parece que o habeas corpus seja o mecanismo jurídico apropriado nessa discussão. É uma medida adotada com a intenção de sanar um constrangimento imposto a um ser humano. Ou seja, seu destinatário final é alguém, não um bicho."

Indiferentes à polêmica jurídica que a ação desencadeou --desde que a desembargadora Alda Bastos, do Tribunal Regional Federal, determinou que elas fossem devolvidas ao habitat natural--, Megh e Debby se divertem em um playground de 600 m2.

O lugar, que mais parece um parque de diversões, foi construído para abrigá-las pelo empresário Rubens Fortes, que se apaixonou pelas chimpanzés quando ficaram sem casa depois da interdição do Paraíso Perdido Park, zoológico de Fortaleza onde nasceram.
Megh faz carinho na babá Nena; chimpanzés dormem, em média, 11 horas por dia

Megh e Debby contam com 20 brinquedos ao ar livre, entre escorregadores, balanços, casinhas e uma piscina de bolinhas. A diversão continua em uma sala de 300 m2 com jogos pensados para estimulá-las. Além de skates e de redes, um laptop infantil faz a alegria das meninas, que não gostam de bonecas. Bola é o brinquedo preferido da superativa Debby, que, ao contrário da irmã, prefere as atividades físicas às motoras. "Megh é capaz de passar horas colocando pedrinhas dentro de uma garrafa", conta Rubens.

Elas dormem, em média, 11 horas por dia, em camas separadas, com direito a cobertor e travesseiros. O quarto é conjugado a uma sala de TV, para que o aparelho não perturbe o sono das crianças. O dia começa cedo para as babás Nena Machado, 28, e Camila Leite, 16, que acordam às 5h, 30 minutos antes das primatas, para preparar as mamadeiras de achocolatado ou suplemento alimentar para bebês.

Nena e Camila passam o dia por conta das chimpanzés. São elas que preparam as cinco refeições diárias das duas com cardápio igual ao de um ser humano, mas tudo numa cozinha exclusiva. "Elas não gostam de comer a mesma coisa dois dias seguidos. Se houver repetição, elas reclamam e não comem", diz Nena.

As atividades das chimpanzés são acompanhadas de perto pela "mamãe" Cláudia, que praticamente se mudou de São Paulo, onde vive a parte humana da família, para Ibiúna para cuidar das "caçulas". Tanto mimo é retribuído. As primatas abraçam, beijam e até penteiam os cabelos dos "pais", da "irmã" e das babás. "As meninas não têm rotina fixa. São elas que escolhem quando e o que vão fazer", garante Rubens, que mantém as chimpanzés em um amplo terreno de mata e com um rio ao fundo. São cerca de 1.000 m2 construídos e cinco ambientes diferentes interligados e elaborados para elas.

Rotina tão próxima à dos humanos torna a situação legal de Megh e Debby complexa. Devolvê-las à natureza, como determina a desembargadora, seria sentença de morte. "Esses animais não têm a mínima condição de serem introduzidos na natureza. Vão morrer. Vivem em situação humanizada e nasceram em cativeiro", explica Antônio Ganme, coordenador da divisão de fiscalização de fauna do Ibama.

O imbróglio é maior pelo fato de os primatas não serem nativos da fauna brasileira. O biólogo Luiz Fernando Padulla, que fez parecer apresentado à Justiça sobre o caso, conta que soltá-las na natureza é inviável: "A ação colocaria a vida delas em risco e causaria desequilíbrio ecológico, já que são naturais das florestas africanas com patologias específicas e necessidades alimentares diferenciadas da selva".

O habeas corpus foi uma saída extrema do empresário, que não mede esforços para manter os animais perto. Há um ano e meio, as chimpanzés vivem em um santuário, como são chamados os criadouros de animais exóticos autorizados pelo Ibama.

Em São Paulo desde 2005, elas já mudaram de endereço três vezes. Em Ubatuba, viviam em um luxuoso terreno de frente para o mar. Mas, por estarem próximas de uma reserva, o Ibama negou autorização para o santuário, pois a presença delas poderia causar desequilíbrio ecológico.

A decisão do TRF saiu quando a dupla já estava no santuário Caminhos da Evolução, que naquele momento ainda não havia sido autorizado pelo Ibama.




Babá Nena escova os dentes de Megh, que tem três anos e vive em Ibiúna

"O santuário de Ibiúna hoje é credenciado pelo GAP e está homologado pelo Ibama. Essa decisão judicial não faz o menor sentido", afirma Pedro Ynterian, presidente do GAP International (Great Ape Project), sigla em inglês para Projeto dos Grandes Primatas, como é conhecido no Brasil. "Estamos provocando a Justiça brasileira para que ela confirme que os chimpanzés têm direito constitucional à vida."

A alegação é a de que eles têm 99,4% do material genético humano, mesmo sangue, são seres inteligentes e vivem em comunidade. "Só não sabem falar. Também não tem humano que não sabe falar?", provoca Pedro.


Crianças mimadas

Rubens está disposto até mesmo a ir à Corte Internacional de Justiça em Haia, para manter as chimpanzés. Não parece cansado de uma disputa judicial que já dura três anos. A primeira foi para transportá-las de Fortaleza para São Paulo. O Ibama não liberou a autorização, alegando problemas na documentação.

Inconformado com a negativa, Rubens deu seqüência ao plano, à revelia. "A situação era gravíssima. Faltava comida no zôo", diz o empresário. Primeiro, trouxe Debby, que se chamava Lilly, como foi batizada. Cinco meses depois, voltou para buscar Megh.

Para ajudá-lo nas viagens, contratou um biólogo. Eles se revezavam entre fraldas e mamadeiras. A dedicação de Rubens é total. Ele sai de São Paulo, onde dirige uma fábrica de alimentos, duas vezes por semana para visitar as "meninas" em Ibiúna. Sua mulher chega a dormir no quarto das primatas quando estão doentes. "Sei que tudo isso parece loucura para quem olha de fora, mas é um amor que não tem como explicar", diz o empresário.

Hoje, Megh e Debby não seriam bem-vindas entre seus semelhantes na África. Enquanto a Justiça não decide quem vai ficar com elas, a humanização das primatas chega ao ponto de não dormirem mais no chão nem se alimentarem sozinhas.

"Elas não são só crianças. São duas crianças mimadas", brinca Selma Mandruca, presidente do Projeto dos Grandes Primatas no Brasil.

Saiba mais sobre chimpanzés*

Origem: África Tropical
Tempo de vida: 40 anos na natureza; até 80 anos em santuários
Peso: de 60 kg (fêmeas) a 80 kg (machos)
Gravidez: entre oito e nove meses
Cópula: dezenas de vezes para cada filhote concebido
Cuidados maternos: de dois anos (cativeiro) a cinco anos (natureza)
Amamentação: até os quatro anos
Alimentação: de frutas a carne, de formiga a cupim

- Os chimpanzés apresentam 99,4% de identidade genética com o homem
- Como nós, reconhecem a própria imagem no espelho
- Conseguem aprender a usar ferramentas, usar sinais de linguagem dos surdos-mudos e resolver problemas baseados na percepção entre causa e efeito
- Reúnem-se em bandos, assim como o homem, para matar seu semelhante premeditadamente
- O infanticídio já foi documentado
- São territoriais ao extremo
- Disputam espaço utilizando pedras e galhos como armas na natureza
- Quando brigam, reações hormonais levam o bicho a eriçar os pêlos do corpo para dar a impressão de serem maiores e arreganham os dentes para assustar o adversário
- Gritos são usados habitualmente para demarcar território
- Abaixo do macho alfa, vêm o beta e o gama, segundo e terceiro, respectivamente, colocados na hierarquia. O alfa tem poder temporário, que depende das alianças que faz com outros animais do grupo, tanto machos como fêmeas
- Há registro de canibalismo na natureza, porém são raros

Fontes: "Folha Explica Macacos", de Drauzio Varella (Publifolha, 100 págs., R$ 17,90), e Pedro Alejandro Ynterian, presidente do projeto GAP International (Great Ape Project - Projeto dos Grandes Primatas)

Colaboraram: Ocimara Balmant e Roberto de Oliveira